Por: Antônio Scavone Júnior
Doutor e Mestre em Direito Civil. Coordenador de curso de Pós-graduação em Direito Imobiliário. Professor de curso de Graduação, de Pós-graduação e de Mestrado. Advogado Militante e Administrador de Empresas. Autor e Coautor de diversas obras.
Até recentemente a jurisprudência pátria parecia contemplar a alienação fiduciária de bem imóvel, prevista na Lei 9.514/1997, como o porto seguro dos credores no mercado imobiliário.
Com efeito, nos termos dos arts. 26 e 27 da Lei da Alienação Fiduciária de Imóvel (Lei 9.514/1997), com a mora, basta ao fiduciário-credor levar a efeito a notificação do fiduciante-devedor e, diante da ausência da purgação da mora no prazo de quinze dias, mediante simples recolhimento do ITBI, observar a consolidação da propriedade em seu nome na matrícula.
Seguem-se tranquilamente os leilões, sendo o primeiro no prazo de até trinta dias da data da consolidação na matrícula pelo preço de avaliação determinado no contrato e o segundo, frustrado o primeiro pelo valor de avaliação, em até quinze dias do primeiro leilão pelo preço mínimo da dívida.
Pelo menos esta é a solução linear e simples adotada pela sistemática da alienação fiduciária de bem imóvel, atrativa para os credores e terrivelmente violenta para os devedores que podem ver o investimento ruir no segundo leilão quando o imóvel, em verdade concedido em garantia, pode ser alienado pelo valor da dívida.
Nada sobrando da venda pelo preço mínimo da dívida no segundo leilão, o valor investido se transforma literalmente e integralmente em pó.
Aliás, essa ainda é a posição jurisprudencial espelhada no seguinte aresto da pena do Desembargador Carlos Alberto Garbi, do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Ação de cobrança. Compromisso de compra e venda com financiamento imobiliário e pacto adjeto de alienação fiduciária. Inadimplemento dos compradores. (…). Restituição das parcelas pagas. Inadmissibilidade. Impossibilidade de aplicação do art. 53 do CDC. Consolidação da propriedade em nome da fiduciária. Arrematação do bem. Inexistência de saldo em favor dos autores. Restituição de parte do montante pago a ser apurado segundo as regras do art. 27 da Lei nº 9.514/97. (…) Não é o caso de se aplicar o art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, permitindo a restituição das parcelas pagas pelos autores, tampouco de se reconhecer a rescisão do contrato que já foi rescindido. A hipótese dos autos trata de compromisso de compra e venda com alienação fiduciária em garantia, disciplinada pela Lei n° 9.514/1997, de modo que vencida e não paga a dívida, constituído em mora o fiduciante, a propriedade do imóvel se consolida em nome do fiduciário. 3. A ré cumpriu integralmente a sua prestação, entregando o imóvel e celebrando o contrato de compra e venda. Financiou o preço e tornou-se credora fiduciária, com propriedade resolúvel sobre a unidade autônoma. Disso decorre não mais existir contrato bilateral a ser resolvido, por iniciativa de qualquer das partes. Existe somente contrato unilateral de mútuo garantido por propriedade fiduciária. 4. O inadimplemento dos autores não acarreta a resolução do contrato de compra e venda, perfeito e acabado. Cabia à credora fiduciária apenas a execução do preço financiado, mediante excussão do imóvel vinculado ao crédito garantido por propriedade fiduciária. 5. No caso, não se verifica qualquer ilegalidade na realização do leilão pela ré, porque, diante do confessado inadimplemento, a Lei autorizava a consolidação da propriedade do imóvel em favor do credor fiduciário (arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97). 6. De todo modo, o reconhecimento de que não há ilegalidade na consolidação da propriedade do imóvel pela ré, inviabiliza a pretensão à devolução dos valores pagos pelos autores, visto que despareceu o fato no qual estava amparado o direito em questão em razão da excussão do imóvel dado em garantia. 7. No caso, a ré obteve a consolidação da propriedade do imóvel pelo valor de R$ 304.096,30, outorgando aos compradores plena, geral e irrevogável quitação da dívida, nos termos do § 6º do artigo 27 da Lei n° 9.514/97. Portanto, descabe o pedido de devolução dos valores pagos a título de financiamento de imóvel objeto de alienação fiduciária em garantia, que só seria possível com o reconhecimento de saldo favorável aos autores no leilão do imóvel garantidor da dívida, o que não ocorreu na hipótese. 8. Sentença reformada. Provido o recurso da ré para julgar improcedente o pedido e prejudicado o recurso dos autores. (Apelação 0221567-17.2011.8.26.0100 Relator: Carlos Alberto Garbi; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 10/03/2015; Data de registro: 12/03/2015)”
Nada obstante, modificando substancialmente o panorama atual, o Superior Tribunal de Justiça, em decisões recentes, definiu algumas consequências que não decorrem literalmente da Lei 9.514/1997.
Com efeito, determinou aquela Corte:
a) a aplicação da teoria do adimplemento substancial (Agravo em Recurso Especial nº 710.805 – SE – 2015/0111548-1 – Min. Maria Isabel Gallotti);
b) a necessidade de intimação pessoal do devedor acerca data dos leilões, exigência que não consta literalmente na Lei 9.514/1997 (AgRg no REsp 1367704/RS, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 04/08/2015, DJe 13/08/2015; No mesmo sentido: Resp nº 1.483.773 – PE (2014/0246459-3). Rel. Min. Raul Araújo. Julg: 27/04/2015); e,
c) a possibilidade de purgação da mora até a assinatura do auto de arrematação (Resp 1.433.031/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, 03/06/2014 e REsp 1447687/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 21/08/2014).
Notadamente para permitir a purgação da mora até a data do leilão e, principalmente, exigir a intimação pessoal do ex-fiduciante que viu a propriedade ser consolidada nas mãos do credor, o STJ fundou-se em interpretação sistemática, invocando o Decreto-lei 70/1966.
Isto porque o art. 39, II da Lei 9.517/1997 (Lei de Alienação Fiduciária de Imóvel), determina a aplicação das disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei 70/1966.
E, entre os dispositivos mencionados do Decreto-Lei 70/1966, o art. 34 permite a purgação da mora até o leilão e o art. 36 exige o conhecimento dos leilões do imóvel pelo devedor (menciona “imóvel hipotecado”, posto que a esta garantia se refere) conhecimento este que o STJ interpreta como necessidade de intimação pessoal sob pena de nulidade dos leilões.
Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, além da notória insegurança jurídica, instaurou o verdadeiro mistifório interpretativo, o que se afirma na exata medida em que, ao mesmo tempo em que permite a purgação da mora até a data dos leilões e exige que deles o devedor (ou “ex-devedor”) seja intimado pessoalmente, admite a reintegração de posse desde a data da consolidação da propriedade no registro de imóveis, lembrando que a consolidação se dá depois de quinze dias da notificação para que o devedor purgue a mora (REsp 1.155.716/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13.03.2012, DJe 22.03.2012).
Em resumo, o STJ:
a) Permite a reintegração de posse depois da consolidação e, de outro lado, admite a purgação da mora até a data da arrematação no leilão e exige a intimação pessoal para os leilões (com o devedor já desalojado?);
b) Determina a intimação pessoal para os leilões, ainda que a lei prescreva prazos peremptórios para realização deles depois da consolidação (até 30 dias da consolidação para o primeiro leilão pelo valor de avaliação do imóvel constante do contrato e segundo leilão em até 15 dias do primeiro pelo valor mínimo da dívida) , o que pode se frustrar se o ex-fiduciante não for localizado.
Outrossim, para a consolidação da propriedade, a Lei 9.514/97 exige pagamento do ITBI. Mesmo assim o STJ permite a purgação da mora até a arrematação.
Como ficarão, assim, as despesas, o ITBI e o próprio registro da consolidação na matrícula se houver purgação, já que a lei não prevê?
À toda evidência os sistemas contemplados na Lei 9.514/1997 e no Decreto-lei 70/1966 não são compatíveis e as recentes decisões colocaram a Alienação Fiduciária na vala comum, com a mesma, senão maior insegurança se comparada à garantia hipotecária.
Caberá ao STJ esclarecer e, quiçá, pacificar o agora tumultuado entendimento da matéria por força das suas próprias decisões, o que é de se lamentar tendo em vista que aquela Corte existe constitucionalmente, inclusive, para zelar pela correta interpretação da lei federal.
*
Fonte: GEN Jurídico