Em 2 anos, registros de crime virtual em cartório crescem 88%
Em dois anos, cresceu em 88% o número de documentos lavrados em cartórios do País que comprovam abusos e crimes virtuais, alcançando a marca de 33.455 (91 por dia) em 2014.
Vítimas de difamações, vazamento de fotos e vídeos íntimos, perfis falsos e bullying têm usado cada vez mais as atas notariais ainda pouco conhecidas por dois motivos: a rapidez com que essas agressões podem ser apagadas e a inclusão desse instrumento como prova judicial no novo Código de Processo Civil, sancionado pela presidente Dilma Rousseff em março deste ano.
A ata notarial nada mais é que o registro, pelo tabelião, de que uma agressão existiu. A vítima de um crime virtual se dirige a um cartório de notas e diz ao funcionário o que aconteceu. Ele entra na página indicada, que pode estar online ou até ser uma conversa no WhatsApp, e registra em um documento tudo o que está ali postado.
Posteriormente, mesmo que as mensagens sejam apagadas, o registro vai servir de prova perante a Justiça em um eventual processo. Isso porque o tabelião tem fé pública, ou seja, tudo o que produz é considerado verdadeiro. “A primeira coisa que tem de ser objeto de preocupação da vítima, logo após o descontentamento (com o ataque virtual), é garantir que todos os vestígios daquela agressão não sejam perdidos ou apagados dentro do ambiente eletrônico”, afirma Alexandre Pacheco, professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas e pesquisador do Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação (GEPI).
“Hoje, com o Marco Civil da Internet, é mais difícil que os dados se percam (os provedores de conexão são obrigados a guardar informações por um período de seis meses a um ano). Mas a ata se torna um instrumento relevante porque a gente sabe que processos judiciais demoram ‘na casa’ dos anos, e não dos meses”, explica.
Defesa. O Estado de São Paulo é o campeão no número de atas lavradas, concentrando 29% do total compilado em 2014. A paulistana Luana (nome fictício), professora de dança do ventre de 40 anos, descobriu essa ferramenta jurídica quando ainda existia o Orkut. Na comunidade da rede social que reunia profissionais da escola em que ela trabalhava, alguns colegas, que segundo ela ficaram incomodados com o seu jeito brincalhão em classe, escreveram que a professora dançava sem calcinha, que ela não respeitava as tradições e sua maneira vulgarizava a dança do ventre. “Começaram a falar um monte de coisa mentirosa, anonimamente, e eu só pensava no que a minha filha, que tinha uns 6 anos na época, ia pensar de mim, se ficasse sabendo”, relata.
Luana diz que conversou com o marido e os dois foram aconselhados por um amigo que trabalhava em cartório a registrar uma ata notarial. “Eu tenho a impressão de que meu caso foi um dos primeiros relacionados à difamação pelas redes sociais, foi bem no comecinho. As pessoas acham que na internet podem escrever o que bem entenderem, o que é muito feio e não é verdade.”
Ela salienta que bastou exibir aos colegas a ata notarial, na escola em que trabalhava, para as agressões cessarem. Felizmente, para ela, não foi necessário ingressar com uma ação judicial. Hoje, Luana recomenda que outras pessoas usem desse instrumento jurídico. “É um recurso que é uma arma, uma defesa, e tem a tendência de crescer cada vez mais.”
Maioria dos registros de abusos virtuais é de crimes contra a honra
A ata notarial não é um instrumento jurídico novo, mas ganhou importância por causa das características efêmeras das mensagens veiculadas na internet ou nos celulares. Andrey Guimarães Duarte, diretor da seção São Paulo do Colégio Notarial do Brasil, entidade que representa os cartórios diz que esse documento existe desde a época dos descobrimentos. “Os barcos e naus que saíam de Portugal e da Espanha tinham tabeliães incumbidos de fazer atas sobre as terras encontradas. Há duas ata notariais sobre o descobrimento da América”, afirma Duarte.
A Lei dos Cartórios, de 1994, tornou expressa a ata notarial como um documento atribuído ao notário ou tabelião de nota. Ela pode ser solicitada por qualquer pessoa que queira comprovar um fato como, por exemplo, ameaças recebidas pelos filhos na escola. Em um caso como esse, o tabelião pode até se dirigir ao local para constatar o ocorrido e incluir nos registros fotos, mensagens de celular e transcrição de áudios.
Mas a finalidade que tem tido destaque no uso dessa ferramenta é no apontamento de crimes virtuais. “O uso frequente da comunicação das pessoas por meio da internet e dos meios virtuais é uma das maiores causas do aumento (do número de documentos lavrados), e a ata notarial tem se tornado uma ferramenta diária para os advogados por causa de sua inclusão no Código Civil”, ressalta. O professor da Escola de Direito da FGV Alexandre Pacheco concorda. “Do ponto de vista da sua novidade jurídica, esse instrumento foi reaproveitado pelas questões que se apresentaram com as características da internet. A ata não é conhecida das pessoas, mas é muito conhecida pelos advogados. Se fosse há cinco ou seis anos, eu diria que ela era desconhecida dos dois grupos. Nesse meiotempo, houve a emergência de um Direito voltado para o universo digital.”
Pacheco afirma que hoje os próprios advogados buscam e aconselham que os seus clientes façam esse tipo de registro. “É algo que, antigamente, servia para pouca coisa ou não servia para esse fim (crimes virtuais), e agora pode ser usado de forma ampla e irrestrita”, argumenta.
Honra. Duarte destaca que, dentre as atas em que constam abusos virtuais, as mais comuns são relativas a crimes contra a honra, ou seja injúria (ofende a honra subjetiva como, por exemplo, dizer que alguém é feio), difamação (ofende a pessoa perante a sociedade, como no caso de se chamar alguém de ladrão) e calúnia (afirmar que alguém cometeu um crime como roubo). “São a maioria absoluta dos casos, porque a internet deu visibilidade para quem quisesse dar a sua opinião, e todo mundo tem uma”, diz o diretor do Colégio Notarial.
Fonte: O Estado de S. Paulo